quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Os Contos do Triângulo Bruxo ~ Primeiro Conto



“Unicórnios, salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros. Talvez acredite em fadas. Também, orixás quem sabe? Ou átomos, buracos negros, anãs brancas, quasars e protozoários. E diria com aquele ar ‘levemente pedante’: - Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno”.
- Caio Fernando Abreu.



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Londres, Inglaterra, 02 de Janeiro de 1854.




- Andem logo com isso!

- Vamos, desçam logo!

- Coloquem todas as caixas aqui!

- Mais rápido, temos que terminar de descarregar isso ainda hoje!

Muita conversa, gritos de ordens e sons de homens andando de um lado para o outro enquanto descarregavam os navios era tudo que se ouvia no porto àquela hora da noite. Marinheiros exaustos carregavam caixotes de um lado para o outro, enquanto outros marinheiros limpavam navios.

Um marinheiro dentre todos aqueles que ali estavam ouve um som de cantoria distante, que parece vir de algum lugar pouco mais afastado dos navios.

- Ei, você ouviu esse som?

- Que som? – perguntou outro marinheiro.

- Parecia uma mulher cantando.

- Parem de conversar e andem logo com isso! – a voz do capitão se fez presente acima do barulho todo que ali se ouvia e os marinheiros voltaram ao trabalho.

Mas aquele primeiro marinheiro era um homem curioso e decidiu ir atrás daquela voz. Misturando-se entre outros marinheiros, o homem se afastou dos navios e foi até a extremidade deserta do porto.

Sentada na borda de pedras com os pés balançando sobre a água havia a jovem mais bela que aquele marinheiro já vira: a pele pálida e lisa como porcelana, longos cabelos louro-prateados e grandes olhos azuis; parecia um anjo da noite em seu vestido preto e tinha a voz mais melodiosa que aquele homem já ouvira.

- O que faz sozinha aqui essa hora da noite, senhorita? – o marinheiro atreveu-se a perguntar.

- Estava a admirar o luar... É uma bela noite, não acha? – respondeu a jovem.

O homem não sabia o porquê, mas não tinha mais controle sobre si. Começara a caminhar em direção a jovem e não era capaz de responder.

- O que acha de darmos um mergulho? – a jovem recomeçara a falar – Quem sabe, talvez, nós pudéssemos nadar... Para sempre.

Os marinheiros que descarregavam os vários navios não ouviram o som que o corpo daquele homem fez ao cair no mar. Aquele não seria o único marinheiro a se afogar naquela noite.


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Londres, Inglaterra, 10 de Janeiro de 1854.




Ninguém sabe dizer quando, como ou onde o primeiro deles surgiu. Tudo que se pode dizer com certeza é que existem há muito tempo. Os Conselheiros acreditam que, independente do motivo que levou ao surgimento de sua espécie, sua existência tem um único objetivo: cuidar desse planeta e proteger os humanos que o habitam da própria ignorância. 

Não digo ignorância no sentido de burrice, mas como algo próximo a ingenuidade. Os humanos acham que está tudo bem procurar por criaturas mágicas; que poderão lidar com elas; que eles podem se envolver com magia. Não, não podem e nem devem tentar fazer isso. Criaturas não mágicas participando do mundo mágico sempre acaba em confusão.

Como os humanos parecem ser incapazes de controlarem a própria curiosidade, eles entram em ação para afastá-los da magia e preservar a segurança de todos. Segundo os Conselheiros, esse é o propósito da vida de cada feiticeiro E é por isso que Nina Moon está em sua carruagem, entrando no território de Londres, Inglaterra. 

Para Nina, Londres é ao mesmo tempo fascinante e deplorável. Ela sabia como a cidade vinha crescendo nos últimos anos e como a nobreza da região tinha em alta conta a moral e a boa conduta em sociedade. Mas também não podia ignorar que, mesmo com tanto progresso, as classes mais baixas viviam sem o mínimo da dignidade humana, boa parte dessas pessoas sendo levada a morte pela cólera. Como uma sociedade moralista que tinha a castidade como virtude e obrigação poderia aceitar facilmente que uma criança de 11 anos estivesse vivendo em um bordel, Nina não sabia; era tudo muito contraditório. Contudo, ela sabia que estava ali porque tinha trabalho a fazer. Ela então percebeu a carruagem parar e logo a porta estava sendo aberta e uma mão enluvada era estendida para si.

- Seja bem vinda a Londres e a residência de Sir Fallheim, Lady Moon. – disse um jovem mordomo, cuja mão permanecia estendida.

Nina aceitou a mão que lhe era oferecida e desceu da carruagem. Ela não tinha nenhum título de nobreza, mas quando um feiticeiro está em missão, é muito simples para os Conselheiros fazerem os humanos acreditarem que você é alguém importante, ligada a um homem importante, dono de terras importantes em algum lugar importante. Também era muito fácil fazê-los aceitar que – qualquer que fosse a história criada por Eles – Nina precisava passar um tempo indeterminado hospedada na mansão de Sir Fallheim – escolhido de maneira aleatória dentre os diversos senhores com alto status em Londres.

Nina observou a aparência externa da mansão: os jardins eram muito bem cuidados e era visível, pela simetria na disposição de janelas, esculturas e vitrais, que Sir Fallheim era com certeza um homem perfeccionista. Embora estivesse ansiosa para conhecer seus aposentos temporários, ela sabia que, sendo uma feiticeira de magia verde, passaria a maior parte de seu tempo nos jardins.

Assim costumam ser os feiticeiros Greenyrs, aqueles capazes de controlar o elemento Terra: gostam de estar próximos a natureza e aos animais. Os próprios Conselheiros, reunidos no Triângulo Bruxo, afirmam que é perfeitamente normal as diferentes inclinações comportamentais dos feiticeiros, dependendo de seus elementos. Nada mais justo que quase todos os vestidos de Nina, inclusive o que está usando no momento, sejam em tons de verde. 

A cor verde representa bem seu elemento, além de combinar com seus grandes olhos verde-escuros e contrastar com sua pele pálida, combinando também com a marquinha esverdeada em forma de folha no seu pulso esquerdo. Os cabelos castanhos e ondulados caindo ao redor do rosto em forma de coração e os lábios cupido naturalmente rosados, assim como as maçãs do rosto, lhe davam uma aparência delicada e bela como uma flor. Isso era que Nina sabia usar em seu favor quando precisava fazer os humanos cooperarem sem usar magia.

Enquanto o mordomo pegava sua única mala na carruagem, outro saía pelas grandes portas frontais da residência e se dirigia a Nina.

- Lady Moon, queria acompanhar-me, por favor. Sir Fallheim está fora a negócios no momento, mas sua esposa, Lady Fallheim, gostaria de encontrá-la para um chá imediatamente. – Nina andou em direção as portas da mansão, enquanto o mordomo a sua frente continuava a tagarelar – Como já deve ter reparado, jovem madame, Sir Fallheim e Lady Fallheim têm excelente gosto para decoração. Tudo nesta mansão é artigo de mais alta classe e a senhora verá que...

Uma vantagem de ser uma Greenyr era que Nina podia se desconectar do som da voz humana e focar seus ouvidos no som da natureza. Ela continuava seguindo o mordomo, mas em vez de prestar atenção no que dizia, ouvia apenas a cantoria dos pássaros no jardim fora dos luxuosos cômodos da residência de Sir Fallheim.

Em um determinado momento, Nina percebeu que o mordomo estava abrindo um par de portas de vidro, que levavam a uma grande varanda, e voltou a prestar atenção.

-... E Lady Fallheim concorda plenamente com essa medida, embora Sir Fallheim diga que isso pode interferir em seus negócios. Muito bem, deixe-me apresentá-la. – e então o mordomo dirigiu-se a uma mulher, provavelmente na faixa dos 30 anos, que segurava displicentemente um livro no colo, como se quisesse passar a impressão de que estivera lendo até aquele momento, mas na realidade sequer sabia de que se tratava o livro.

- Lady Fallheim, esta é Lady Moon, nossa aguardada convidada. – o mordomo então fez uma reverência para Lady Fallheim e se retirou.

Lady Fallheim não se levantou, apenas acenou em direção ao assento próximo ao seu.

- Lady Moon, queira sentar-se, por favor. Fiquei encantada ao saber que a esposa de um importante amigo de meu esposo estava vindo nos visitar. – ah, então essa é a história dos Conselheiros, pensou Nina – Espero que não se incomode por tê-la chamado logo quando acaba de chegar, mas estava ansiosa para conhecê-la.

Mentira. Enquanto ouvia, Nina percebia a voz de Lady Fallheim tornando-se levemente mais aguda, um eco distante permanecendo no ar logo após sua fala e se repetindo em seus ouvidos. Nina sabia que Lady Fallheim não estava nem um pouco ansiosa por tê-la ali, mas não estava muito preocupada com isso. Por mais que tivesse gostado dos jardins, ela sabia que quanto mais rápido terminasse seu trabalho, melhor.

- Não me sinto nem um pouco incomodada, Lady Fallheim – disse Nina, enquanto se sentava – também estava igualmente ansiosa para conhecê-la.

O tempo que passou conversando e tomando chá com Lady Fallheim foi incrivelmente tedioso para Nina. Lady Fallheim conversava apenas sobre roupas, joias e fofocas de outros nobres; não falava sobre nada que realmente interessasse a ela. Mesmo assim, Nina sorria e acenava com a cabeça quando convinha, afinal, viveriam sob o mesmo teto até que sua missão fosse cumprida.


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Londres, Inglaterra, 17 de Janeiro de 1854.




Nina estava sentada em um dos bancos no jardim da residência dos Fallheim pensando em como poderia obter mais informações sobre os acontecimentos ocultos em Londres. Já estava na cidade há uma semana e logo percebera que os desaparecimentos de homens das classes mais baixas vinham sendo encobertos pela nobreza.

A rainha não queria que acontecimentos estranhos trouxessem complicações para seu reinado e assim também pensava o parlamento. Nina não sabia quantos homens tinham desaparecido desde o começo do mês, mas sabia, depois de escutar uma conversa de Lady Fallheim com outra senhora nobre, que os homens desaparecidos eram marinheiros e que os capitães dos navios estavam sendo pagos para criarem histórias que justificassem o sumiço de alguns de seus homens. Mesmo que isso não fosse feito, havia pessoas tão pobres em Londres, já com tantas preocupações na vida, que não se “dariam ao luxo” de se preocuparem com homens sumindo no porto.

A rainha fazia o que podia para cuidar de seu povo, Nina sabia, mas com as fábricas crescendo tanto, não era fácil cuidar da população sem ir de encontro aos interesses econômicos da elite. Sempre que sua carruagem passava por uma fábrica, Nina se indignava ao ver crianças trabalhando tanto. Mas em alguns assuntos humanos os feiticeiros não devem interferir e não era para isso que ela estava em Londres. Nina estava naquela cidade, tão distante de seu pequeno chalé em meio aos carvalhos e coníferas da Bercé Forest, para solucionar os inexplicáveis desaparecimentos no porto e era nisso que deveria se concentrar.
Nina se levantou e voltou para dentro da mansão. Essa noite haveria um baile na residência de Lady Roselyn, uma conhecida de Lady Fallheim, e ela também deveria comparecer. Esta seria a ocasião perfeita para adquirir informações e Nina logo chamou uma empregada para ajudá-la a se arrumar.

A noite não tardou a chegar e logo Nina e Lady Fallheim estavam descendo da carruagem parada diante da gloriosa mansão de Sir Roselyn e Lady Roselyn. Várias pessoas da nobreza também desciam de suas carruagens e se dirigiam as grandes portas frontais.

O salão principal fora decorado com luxo e empregadas e mordomos andavam de um lado para o outro recolhendo chapéus e servindo bebidas. Nina aceitou uma taça por educação, mas não pretendia beber, pois precisava estar 100% focada em conseguir ouvir tudo que pudesse essa noite.  Logo os Conselheiros começariam a achar que Nina estava demorando demais para cumprir sua missão e ela não gostava de ter sua eficiência questionada.

- Lady Fallheim! Aqui, querida! – uma mulher ruiva, um pouco animada demais, talvez já levemente bêbada, acenava para Lady Fallheim e se aproximava de onde as duas estavam.

- Lady Roselyn! Como é bom revê-la!

Mentira. Nina estava impressionada com a capacidade de Lady Fallheim em fingir emoções que obviamente não sentia. Bem, obviamente para Nina, que continuava ouvindo o eco que as mentiras de sua acompanhante deixavam seus ouvidos.

- Igualmente! Como tem passado? E Sir Fallheim? Como está levando as coisas? Meu esposo está muito insatisfeito com a nova medida adotada pela rainha.

- Oh, meu esposo também não está nada contente! Se os navios só podem descarregar os caixotes durante o dia, muita mercadoria especial não pode ser desembarcada... E se alguém visse? Meu esposo crê que isso pode afetar seriamente seus negócios!

Enquanto as duas mulheres discutiam os prós e os contras da nova medida, Nina lembrava-se vagamente de ter ouvido o mordomo dos Fallheim falando algo sobre isso e fez uma anotação mental de prestar mais atenção no que os criados comentam.

- Oh, quanta indelicadeza a minha! Já estava me esquecendo de lhe apresentar Lady Moon.

Nina fez uma leve reverência quando foi apresentada.

- Lady Moon! É um prazer conhecê-la! Que sobrenome peculiar você tem... Seu esposo deve ser de algum lugar bem distante daqui, não é mesmo? Não me lembro de conhecer alguém com esse sobrenome e eu conheço todo mundo!

Lady Roselyn falava cada vez mais rápido, comprovando o fato de estar bêbada, e logo já estava envolvida em uma conversa qualquer com sua amiga. Nina olhava ao redor do salão pensando em como iria abordar o assunto dos desaparecimentos novamente, sem chamar atenção para si, quando reparou na menina de cabelos pretos presos em um coque e que a observava por uma fresta de uma das portas laterais do salão. Dando uma desculpa qualquer, Nina se afastou das duas mulheres e foi até onde estava à menina, tomando cuidado para não chamar atenção para si. Quando chegou a porta lateral, passou por ela e a fechou.

Nina olhou ao redor e percebeu que agora a menina acenava para si do fim do corredor em que se encontrava, onde estava mais escuro. Embora não parecesse a situação mais adequada possível, ela foi até a menina e percebeu que era uma das empregadas de Lady Roselyn.

- Ana precisa ser rápida porque Ana não quer problemas – a garota tinha a voz fraca e falava baixo, olhando para o chão – Ana sabe que a senhora é diferente, Ana já conheceu um menino assim – ela então apontou para a marca de folha no pulso esquerdo de Nina, que a manga de seu vestido de baile marrom não chegava a cobrir.

- Como você conseguiu ver isso de onde estava? – Nina estava surpresa. Muito provavelmente a menina não sabia o que ela era, mas sabia que era diferente das outras pessoas.

- Ana já conheceu um menino como você. – repetiu – Ana teve seu olho curado por ele – e, levantando seu rosto, apontou para seu olho direito, azul claro, diferente do esquerdo que era castanho. Era possível perceber leves traços de magia no olho azul, mas Nina não conseguia imaginar uma situação na qual os Conselheiros aprovariam dar dotes mágicos a humanos... Talvez procurasse saber mais sobre isso depois de terminar sua missão – Ana quer ajudar à senhora... Por que a senhora está aqui?

Nina estava ponderando se deveria aceitar ajudar de uma humana desconhecida ou não, mas levando em consideração o pouco progresso que fez ao longo da semana, toda ajuda seria bem vinda.

- Estou aqui por causa dos desaparecimentos de alguns homens. Sabe sobre isso, Ana?

- Ana ouviu conversas, senhora. Os navios da noite descarregam produtos proibidos e os marinheiros estão se afogando, senhora. Ninguém sentiu falta no começo, mas depois pelo menos cinco ou seis marinheiros começaram a desaparecer em algumas noites. E também tem a música, senhora.

- Música? – Agora Nina não sabia mais do que a menina estava falando.

- Sim, senhora... Um marinheiro que eu conheço me disse que ouviu música, uma mulher cantando, senhora. Disse que ia ver o que era quando o capitão o chamou... Um companheiro de navio dele se afogou naquela noite, senhora.

Nina ouviu um clique em sua cabeça quando algo encaixou. Conseguia pensar em algumas criaturas mágicas que poderiam estar envolvidas em algo assim.

- Em que navio o seu amigo trabalho, Ana?

- No Miss Elizabeth I, senhora. A senhora quer falar com ele?

Nina pensou e decidiu que já se arriscara demais conversando com a menina e que seria melhor não envolver outros humanos também. Sabia onde esse navio estava ancorado, pois já o vira quando chegou a Londres.

- Não é necessário, Ana, obrigada. Preciso ir agora, tenho algo para fazer, mas obrigada pela ajuda.

Ana fez uma reverência e Nina voltou ao salão principal, tentando agir naturalmente, como se nunca tivesse saído de lá. Essa noite seria longa, mas a próxima seria mais ainda: Nina iria fazer uma visita noturna ao Miss Elizabeth I.

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Londres, Inglaterra, 18 de Janeiro de 1854.




Desde que chegara a Londres, Nina nunca vira a residência dos Fallheim tão vazia e silenciosa. Não havia criados circulando de um lado para o outro, nem música tocando, nem Lady Fallheim conversando – sozinha – o tempo todo. Mesmo os jardins, que eram menos movimentos que a mansão, nunca foram tão silenciosos.

Nina abria a porta dos criados, nos fundos da mansão, tomando o maior cuidado possível para não fazer ruídos, afinal, não queria ser pega deixando a residência perto da meia noite e vestida com trajes masculinos. Seria complicado inventar alguma desculpa plausível e trabalhoso apagar as memórias de quem a visse, afinal, como Greenyr, essa não era sua melhor habilidade.

Enquanto se misturava as sombras das árvores do jardim, a feiticeira pensava em como faria para encontrar a causa dos desaparecimentos quando chegasse ao porto. Ela tinha uma ideia do que poderia estar acontecendo – e que tipo de criatura poderia estar envolvida -, mas ainda não tinha um plano bem definido. Contudo, Nina sabia que, com ou sem plano, tinha que agir logo... As ideias que passavam em sua cabeça sobre as causas dos desaparecimentos não eram muito boas e essa situação precisava ser resolvida. Automaticamente, levou a mão ao pescoço para constatar que seu amuleto encontrava-se ali, bem seguro no cordão ao redor de seu pescoço.

Ela andava pelas ruas silenciosas de Londres em direção ao porto, enquanto imaginava como faria para se misturar aos outros marinheiros sem chamar atenção. Nina sempre gostou de ser uma Greenyr, mas às vezes invejava os Rayns e sua capacidade de ser tornarem invisíveis... Sem falar que um porto, cercado pelo mar, seria um campo de ação muito mais propício a um Rayn do que a um Greenyr, e esse pensamento rondava sua mente... Contudo, essa não era a hora para pensar sobre isso, afinal, Nina foi a indicada para essa missão e iria finalizá-la.

Quando chegou ao porto, a primeira coisa que incomodou Nina foi o silêncio. Via os barcos atracados e algumas poucas pessoas carregando alguns caixotes pelas sombras – talvez marinheiros forçados a trabalhar por capitães que não queriam seguir as normas estabelecidas pela rainha –, mas não se ouviam conversas e mesmo o oceano parecia calmo e sem ondas. Ela procurou por um beco e tirou do pescoço o seu amuleto, que transformou-se em uma varinha feita inteiramente de esmeralda, do comprimento de seu antebraço... Nina riu-se um pouco pensando em como os humanos, em suas histórias sobre bruxas, alegavam que viram mulheres usando varinhas de madeira... Bem, com toda certeza, essas mulheres não eram feiticeiras.

A primeira coisa que Nina fez foi tocar sua marca com a varinha e invocar seu arco e flechas... Não que ela fosse atacar a criatura que estivesse causando toda essa situação, sabia que teria apenas de capturá-la e enviá-la ao Triângulo Bruxo, mas se sentia mais segura com suas armas ao seu alcance. Uma vez com suas armas, Nina foi se esgueirando pelas sombras, vasculhando o porto com os olhos, atenta a qualquer sinal de movimentação estranha.

Identificou o Miss Elizabeth I e percebeu que era um dos poucos navios atracados que estava descarregando alguns caixotes aquela noite. Nina podia imaginar todo tipo de mercadoria ilícita que aqueles caixotes guardavam, mas esse não era um assunto para os feiticeiros cuidarem. Por quase uma hora ela observou o navio e os marinheiros e nada pareceu estranho aos seus olhos. Nina já estava quase pensando em desistir, voltar à mansão e pensar em um plano diferente para descobrir o que estava acontecendo.

E então começou. Em seu subconsciente, Nina desejou que Ana estivesse errada, que não ouvisse nenhuma música enquanto estivesse ali. Mas dada sua excelente audição, era inegável que aquilo que ouvia e desejava que fosse apenas o vento, era uma música sem palavras, cantada por uma voz suave e melodiosa. Estranhamente, por alguns minutos, pareceu que mais ninguém ouvia a música... Até que um marinheiro, após deixar o caixote que carregava junto aos outros, começou a se afastar do navio, esgueirando-se pelas sombras do porto. 

Embora estivesse um pouco amedrontada, Nina seguiu o marinheiro, que se afastava cada vez mais, até atingir a ponta mais distante do porto. O homem parecia olhar algo a sua frente, parecia estar conversando... Nina ia se aproximando devagar para tentar ver o que era, até que, num movimento rápido, o corpo do homem subiu no ar e foi arremessado em direção ao mar. Num ato reflexo, ela encostou sua varinha ao chão, a esmeralda se iluminando, e ramos verdes saíram da terra, enrolando-se em torno do homem e trazendo-o de volta ao porto.

Quando o corpo do marinheiro caiu no chão, Nina foi até ele ver se ainda estava vivo. Já estava quase o alcançando quando a viu: uma jovem incrivelmente bela em seu vestido negro, olhando-a furiosamente.

- Como se atreve? Quem é você para interferir dessa forma? – apesar da voz suave que a jovem tinha, era possível ouvir a raiva em suas palavras.

- Creio que sou eu quem deveria fazer perguntas aqui. – respondeu Nina – Você tentou jogar este homem ao mar... Por quê?

- Não sabe o motivo, feiticeira? Não me diga que essa é a primeira vez que encontra alguém como eu.

Não era a primeira vez que Nina se deparava com uma Mermydian, mas todas as outras vezes estivera apenas acompanhando alguma missão. Nunca antes lidara com uma dessas criaturas sozinhas e isso a deixava nervosa.

- Não, não é a primeira vez.

- Então você já sabe a resposta de sua própria pergunta. É assim que nós vivemos afinal, nos alimentamos desses tolos humanos...

- Humanos não são tolos, apenas não são mágicos como eu ou você.

- E é isso que os transforma em alimento, afinal, que outra serventia teriam as criaturas não mágicas?

Nina estava começando a se sentir enjoada. Sabia que as Mermydians comiam carne humana, mas isso não tornava as coisas mais simples.

- Todos os desaparecimentos de homens nas últimas semanas, foi apenas você? – Ela precisava saber quantas dessa criatura havia na região.

- Fui apenas eu que os atraí ao mar, se é isso que está perguntando, mas não fui apenas eu que me alimentei deles, afinal, existem outras criaturas com bom gosto para comida no mar... – A Mermydian sorriu, olhou para o mar um instante e depois voltou seus olhos para Nina – Vocês, feiticeiros, sempre aparecem onde não são chamados... Isso é irritante... Sabe, talvez não precisemos de vocês... Poderíamos passar nossas vidas muito bem sem nunca ver um feiticeiro.

- Claro, se não existíssemos, vocês apenas extinguiriam a raça humana e depois passariam a comer uns aos outros, de certo. – Nina não pretendia soar rude, mas sentia-se zonza, como se a voz da Mermydian estivesse bagunçando seu cérebro.

Nina fechou os olhos por um segundo, na intenção de diminuir a vertigem, o que foi tempo suficiente para a Mermydian entrar no mar. Quando abriu os olhos, a jovem bela tinha se transformado numa criatura meio humana, meio peixe, completamente negra, com um único grande olho azul. A Mermydian abriu a boca e dela saiu um grito tão estridente que parte da estrutura do porto começou a desabar no mar.

Com sua varinha, Nina criou uma espécie de gaiola de cipós, grande o bastante para uma pessoa de grande porte.

- Olhe, nós não precisamos agravar a situação. – disse para a Mermydian – Se me deixar levá-la ao Triângulo Bruxo, ninguém lhe fará mal e ninguém saíra ferido.

O riso que a Mermydian emitiu parecia seco e sua voz já não podia mais ser chamada de melodiosa quando falou.

- Levar-me? Nessa gaiola? Não sou um animal, feiticeira petulante! – E lançou contra Nina bloco de água que mais parecia pedras quando a atingiram.

Nina rolou na terra do porto e se levantou. Tentou conjurar cipós para segurar a Mermydian, mas ela foi mais rápida e deu um grito ensurdecedor, que fez o céu encher-se de nuvens e o ar ao redor de Nina transformar-se em um tornado. Nina foi arremessada com força contra uma árvore e sua varinha de esmeralda caiu de sua mão. Nina viu então que grandes pedras circundavam o ar junto ao tornado e pareciam vir em sua direção. Por um instante, acreditou que fosse morrer. Esse instante foi suficiente para que pegasse o arco em suas costas, encaixa-se uma flecha e acertasse diretamente no coração da Mermydian. Nina nunca errava o alvo.

Subitamente, tudo parou. O tornado desfez-se e as pedras caíram no chão. O corpo da Mermydian boiava na água, enquanto seu sangue, azul e borbulhante, se espalhava ao seu redor. Por um momento, tudo ficou quieto e Nina suspirou aliviada: estava viva. 

Então, tão subitamente como tudo acabou, o desespero tomou conta de Nina. Havia acabado de matar uma criatura mágica. Não importa o risco que estivesse correndo, matar criaturas mágicas era o segundo maior crime que um feiticeiro poderia cometer. 

- Oh não, oh não, oh não. – a voz de Nina tremia.

Ela se aproximou do lugar onde o corpo da Mermydian boiava; estava morta, não havia a menor dúvida.

- Oh, o que farei agora?

Nina não podia levar o corpo até o Triângulo Bruxo. Seria punida por seu crime, taxada de assassina, jogada nas celas das prisões circulares. Não, não, aquilo não podia estar acontecendo. Fora um acidente, Nina pensava, a certeza da morte a fez perder o controle de si... Mas ela sabia que esse não seria um argumento válido perante aos Conselheiros. 

Após um momento de terror e reflexão, Nina reencontrou sua varinha e a encostou na marca em seu pulso esquerdo. Enquanto as lágrimas corriam por seu rosto, a marca queimou e se tornou uma mancha negra e irregular. Estava feito. Sua ligação com o Triângulo Bruxo havia sido cortada. Não poderiam rastreá-la dessa forma. Ela deveria fugir e se esconder, e tentar viver como humana. 

Nina correu de volta a mansão dos Fallheim. Enquanto todos ainda dormiam, pegou sua única mala, guardou seus pertences e desceu as escadas em direção as cozinhas. Pegou pão, frutas e uma garrafa de água e colocou-os dentro da mala. Depois saiu novamente pela porta dos empregados e, sem olhar para trás, deixou a residência dos Fallheim, sabendo que jamais voltaria aquele lugar.

Ela estava apavorada. Embora tivesse tomado uma decisão, não sabia para onde ir... Mas não deveria pensar nisso agora. O importante era continuar andando, se afastar o máximo daquele lugar, para que nenhum feiticeiro enviado pelo Triângulo pudesse encontrá-la. 

A partir daquela noite, Nina Moon tornou-se uma feiticeira foragida e os Conselheiros passaram a oferecer uma recompensa para o feiticeiro que a encontrasse. Nina era acusada de friamente assassinar uma Mermydian e fugir da cena do crime, em vez de encarar sua punição. Por muitos meses, Nina sofreu, tentando se adaptar ao modo de vida dos humanos e, depois de um tempo, passou a acreditar que continuaria apenas se arrastando sozinha de um lugar para outro, até que finalmente viesse a falecer. Mal sabia ela que, em breve, teria companhia.

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